sexta-feira, 7 de março de 2014

UM ANJO DISFARÇADO

     Ela sentiu que aquela manhã seria especial! Era uma sexta-feira nublada, abafada, março, final de verão. Então, de máquina fotográfica em punho, lá foi, rumo à lagoa. Cuidadosamente, colocou a máquina_ sua infalível companheira de passeios, na mochila.
    Assim, animada, caminhou pelas ruas próximas que a levariam até àquela paisagem magnífica de um Rio de Janeiro que anda meio desprezado.
     Caminhou por uma, duas, três,  mais outra, ainda mais uma e, finalmente,a paisagem exuberante fora descortinada. Pássaros de várias espécies, cantoria, árvores, flores, águas plácidas e o céu... Ah! Aquele céu revitalizante!...
     Ficou algumas horas caminhando pelas pistas, às margens, sempre à procura de algo inusitado. Encontrou sabiás, bem-te-vis, patos, biguás, martins-pescadores, sanhaços e até um  galo-de-campina! Descobriu ninhos de joão-de-barro e entusiasmou-se com  o casal apaixonado de araras azuis.Foi uma experiência incrível!... Sua intuição estava certa.
     Resolveu voltar para casa, mesmo a contragosto, já que o sol despontara e o calor estava quase insuportável. Suava. O boné e os óculos escuros a protegiam um pouco; no entanto, os tênis e as meias a importunavam. Sentia sede, cansaço, dor nos pés.
     Atravessou a rua principal no semáforo e  pretendia retornar pelo  mesmo caminho. Lembrou-se de uma Cafeteria perto dali e decidiu que o seu café da manhã seria lá. Ao atravessar bem em frente à loja, percebeu uma senhora deficiente que, confusa, balançava sua bengala branca batendo na grande árvore da esquina. 
     Chegou  perto e perguntou à cega se aceitaria ajuda. Notou que muitas pessoas passavam e olhavam a cena com frieza e uma certa repulsa. A senhora já tinha idade avançada e era muito humilde. Trajava uma saia preta desbotada e a blusa, surrada, com trilhas de manchas respingadas. Num dos braços, uma bolsa escura bem velha.
     Ela agradeceu e sabia direitinho onde queria chegar, mas disse que, se a ajudasse na travessia,  já lhe bastava. Assim foi feito;  no entanto, a mulher não conseguiu deixar que aquela figura franzina e cambaleante, tocando com a sua varinha tosca os postes enfileirados pela calçada, seguisse sozinha. Não. Seria muita indiferença. Voltou-se e segurou-a pelo braço fino e trêmulo, confessando sua intenção. Levaria a senhora até o ônibus do metrô, sim!
     A cega, então, não se conteve e a abençoou  até entrar na condução. Foi contando pelo pequeno percurso a dificuldade que passou a ter depois de um tombo no metrô. Quebrara a bacia e depois de muitos exames e atendimentos iria ser operada. Mas, às vésperas, o médico foi removido do hospital e a sua operação cancelada...Nem comentou da cegueira. Todos os dias vinha até à Igreja para rezar e citou o morro onde morava. A acompanhante provisória ficara admirada com tamanha lucidez e tranquilidade ante aquela vida aparentemente tão precária. 
     Retornou para  tomar o seu café, mas o coração já estava alimentado pelo sopro do amor. Um gesto pequeno mas fundamental para quem precisa de um socorro. O socorro da atenção e do carinho.
    E  fora revigorada não só pela contemplação da natureza, mas também  pelo contato com aquela anônima criatura de voz doce  transbordante de ternura.




Nota: Ao colocar o título 'UM ANJO DISFARÇADO' refiro-me à cega que deixa a todos nós o exemplo da humildade, brandura, paz de espírito ante a adversidade da sua existência. Mostra-nos também a força coerente com a sua fé.
 Quanto à mulher que a ajuda, sua atitude deveria ser comum a todos nós, seres humanos.
    
    
    

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