quinta-feira, 27 de junho de 2019

BARULHO NA ALMA

  Há três obras no prédio onde moro: uma no segundo andar, outra no sexto e ainda mais outra ao meu lado, no terceiro andar. Portanto, escrevo mergulhada num barulho infernal, quase indescritível. 
     Além de batuques intermináveis, há o desconforto da zoeira de furadeiras, cheiro de cola e de tinta, além da intensa poeira, é claro.
     Saio, de vez em vez, dou voltas no quarteirão, ontem fui a um lançamento de livro, hoje tem reunião literária. Mas está prevista a chuva!
     Nem sempre queremos sair, nem sempre o intento é este. Haverá sequelas se eu insistir em ficar à mercê de tantos incômodos?
     Acatei a sugestão do meu bom senso e saí de casa. Dei uma volta na praça General Osório, com um pouco de medo de ter que enfrentar um pé d'água.
     O que vi desgostou-me ainda mais. Agora, o barulhão era na alma...
   A imundície, as plantas mortas propositadamente, uma quantidade enorme (cerca de uns vinte!) de mendigos e desocupados tomando conta dos jardins.
   Algumas espécies eu nunca tinha visto, ficam ao redor da grade. E os pedintes deitam-se entre a grade e as plantas mais altas. As baixas eles as sufocam com seus pertences.
     Quando da Prudente de Moraes virava à esquerda, entrando na Rua Jangadeiros, salta um marmanjo do jardim inesperadamente . Olha para mim com um estranho olhar e , retirando de um bolso da calça uma comprida lâmina, passa a raspá-la pela grade, à medida que andava, fazendo um som estridente e ameaçador.
     Fiz que não vi, e, obra do acaso ou não (vai saber?), ali estava, na calçada, toda empertigada, uma planta comprida cheia de graça, tomada de flores de um rosado forte. Diminuí o passo, contemplei-a e segui avante.
     "...
Aos tenros botões,
peço que desabrochem,
se possível com doçura." 
(Du FU, Flores Fugazes)   
    
      
      

domingo, 9 de junho de 2019

O HOMEM DE POLO AZUL

"...
A tua vida, que fizeste dela?
..."    
    Imaginem entrar num hospital público do Rio de Janeiro. Estava  ansiosa, afinal, ouve-se muita boataria... No entanto, este é uma exceção. Um dos poucos hospitais bem avaliados pela própria população.
      Tinha ido  visitar um amigo, recém-operado. Estava muito frio, apesar do sol, sol de outono.
     Notei as pessoas tranquilas ali presentes, desde a entrada, indo para seus lugares nas filas que corriam, sem estagnar. Isto é bom.
     Pessoas de condições sociais humildes, porém, esclarecidas. Observei _novamente, pelas conversas que fluíam, soltas, ao meu redor.
     Ali, pelo menos, enquanto permaneci no ambiente,  passavam uma certa distinção, uma certa nobreza. Conversei com algumas, dei linha, como se diz, para que se soltassem e falassem naturalmente. E falaram. Com muita clareza e simplicidade. Alguns tropeçavam na pronúncia de certas palavras, mas continuavam serenamente, respeitosamente. Outra geração!
     Ah! Mais um atributo: gratidão aos médicos que os atendiam. Eram todos muito afeiçoados aos seus médicos.
     Até que uma funcionária me indicou o corredor dos elevadores. Havia três. Qualquer um deles ia a todos os andares, porém somente num lia-se numa placa, um tanto enferrujada de metal, pregada ao centro, a palavra "SOCIAL".
     À minha frente, três senhores de idade um tanto já avançada. Pois bem. Este elevador chegou ao térreo e, como ninguém entrou... rapidamente a porta se fechou e ele subiu.
     " Os senhores não apertaram o botão pra subir?" falei.  Eles olharam pra mim, silenciosos e, a princípio, nada disseram.   
     Mas, como insisti, o do meio_ vestido com capricho, trajando uma blusa de malha tipo Polo, azul, um azul bonito, celeste, assim como os seus olhos, timidamente, com os braços magros cruzados, levantando os ombros,  balbuciou: "  SOCIAL, não deve ser pra mim; os outros nada têm escrito. Este deve ser para pessoas especiais. Gosto, sabe, dona, de ficar no meu lugar."
     Enchi-me de emoção, de indignação, senti o coração arder, e entabulei com o homem um monólogo rápido e decisivo: " O senhor pertence a mesma sociedade a qual todos pertencemos."
     Percebi o quanto aquele homem estava dizimado em suas qualificações. O que a vida fizera dele?! Sentia-se diminuído, menor que os outros, autoestima rebaixada.
     Novamente o elevador chegou. Falei com autoridade: " Entre!" Ele esboçou um leve sorriso, ainda cabisbaixo, soltou os braços, melancolicamente e estendeu o direito apontando-me a entrada: " Por favor, a senhora primeiro."
     Agradeci e entramos. Ao sair, nos despedimos  com um breve aceno de mão e seu sorriso bom ,agora, era  suave luz no seu rosto.
    
     

sábado, 1 de junho de 2019

A ARTE É A SOLUÇÃO

      Tenho observado que a poesia continua viva, mesmo com tanta feiura  pelo mundo.
     Senão, vejamos estes trechos poéticos,  pinçados de uma autora de agora (Ana Maria Pereira):
"vi andorinhas
carregando sonhos..."
 
"Trilhei o caminho das cataratas
para conversar com a tarde
..." 
" ... ainda nem deslumbrei o sol dentro de mim..."
 
          A Arte salva. Salva aquele que a cria e aquele que a vê. A Arte purifica. Enleva. Anima. Dá-nos resistência ante o sofrimento.
     O ser humano está fadado a criar.  A solução para uma vida menos egoísta e menos perdida é  a Arte.
     Refiro-me a  este prazer da criação que está intrínseco em nós, em nossa alma. Como li noutro dia: "Nascemos gênios, cheios de possibilidades, no entanto a educação nos restringe."
     Naturalmente, o autor se refere à castração da inventividade, que surge, espontaneamente, na experiência da liberdade.
     Vou pelas beiradas, que cada um mergulhe no assunto que lhe aprouver.
     Criar pela vontade, pelo prazer e evitar permitir que o que o mova seja o reconhecimento do outro. É aí que o ser humano, muitas vezes, se perde.
     Numa das minhas visitas à reuniões literárias, pasmem, senhoras e senhores, sobre o que ouvi! Pessoas que não conhecem o idioma, falam e escrevem errado... E ainda se posicionam com ares de sabe-tudo! Uma característica comum nestas pessoas é a verborragia... Quanta ilusão. 
     O que almejam ? Palmas ao final do seu precário e farrapento discurso, desprovido de alma e de conhecimento? Não sei. Fica a pergunta.
     Outro convidado falou, falou e nada disse. Pra fechar, anunciou uma trova! Quanto disparate! Não sabemos o que foi aquilo... uma amiga, ao meu lado, me cutucou e assegurou: Isso não é trova !...  Não, não é, assegurei-lhe.
     E tem mais: Quando anunciam... " Vou dizer uma trovinha..." hum... preparem-se. Coisa boa é que não é!...  
     Trova, soneto, poema... Não tem essa de "trovinha"!
     Não consigo compreender estas investidas de participações em ambientes que deveriam ser cunhados pela correção, pelo conhecimento, interligados, claro, pela alegria e despojamento, este no sentido de simplicidade.
     Difícil ser simples, numa terra de egos inflados.