sexta-feira, 29 de setembro de 2017

ESQUISITICES

     Não. Não sou mais deste mundo, penso. Tudo ficou esquisito, músicas (?) barulhentas, sem melodia alguma, letras tão pobres, pessoas aparentemente desconectadas de si mesmas...
      O que salva é a"Poesia com Rapadura", criação de um espaço num programa matinal da TV brasileira, onde um poeta nordestino, famoso agora, sempre nos presenteia com um poema de cordel.
     O cabra da peste tem valor! Sabe, como ninguém, tocar o coração das pessoas ainda sensíveis.
     E nada como a Poesia nos dias de hoje a nos dar uma chacoalhada para apreciarmos o que ainda é belo e puro e verdadeiro.
     Hoje passou por mim, na calçada, uma velhinha. Mal conseguia andar com suas perninhas magrelas e pequeninas_ devia ter cerca de um metro e quarenta de altura...
     Usava calças coladas e a boca vermelha , já sem definição. Olhou pra mim, com olhar inquisidor. Desviei o meu. E ela continuou a sua caminhada, meio trôpega, meio sem sentido, balançando o esqueleto , a recordar sua ginga de outrora. Triste figura.
     Mas o quê faço? Julgo. E isto não me agrada. Nem um pouquinho.
     Ao telefone, confesso a um antigo amigo que voltei a me interessar pelo jogo de damas, depois que assisti a um programa de TV, onde comentaram sobre os benefícios deste entretenimento.
     Qual não foi a minha surpresa a ouvi-lo, num tom nervoso, voz alterada, que nunca se interessou por estes tipo de jogos_ dama, xadrez, nada disso! O interesse dele seria por bolinhas de gude. "Isso sim, é que me distraía, e não jogos de tabuleiro , onde há um ganhador, onde  aquele que derrota é o mais esperto, inteligente. Não, não os suporto."
     Falou com tal ênfase, que soou como crítica severa. Desconcertei-me. Calei-me. Até as amizades antigas mostram agora um lado antes oculto...
     Mas esse desabafo foi uma velada crítica, ou não? Ando ouvindo em demasia o filósofo, estabelecido na mídia_ Karnal. E já que tenho nata a tendência de análise, agora, então, tudo torna-se motivo para questionamentos.
    O dia foi longo, a espera foi pouca e nada, nem mesmo as esquisitices do mundo atual irão abalar um coração decidido a amar.
    



quinta-feira, 28 de setembro de 2017

ESTRATÉGIAS CONTRA O ESTRESSE

     Qual não foi  o tamanho do meu entusiasmo quando, voando placidamente, veio a grande ave. Como se tivesse planejado com minúcias, como  uma verdadeira estrategista, fez um pouso surpreendentemente suave, apesar do grande porte. De asas enormes, bico longo, pernas muito altas, ali chegou com um só intuito: comer algum peixe distraído.
     

       Era primeira vez que via a grande garça-moura, assim, de perto. Antes já tinha visto em fotos de  livros que estudam pássaros.
     Mas um bicho assim, voando baixo e pousando pertinho da gente, provoca-nos alguma reflexão. Reflexão no mistério da grandeza da vida, no meio ambiente, na alegria que surge, espontânea, ao darmos atenção à natureza a nossa volta.
     Hoje conversei com um amigo meu, fisioterapeuta, de grandes virtudes, como a honestidade e a franqueza. E, conversando, ele me disse que " as pessoas, em geral preferem o artificialismo, o engodo, a afetação".
     Ele dá alta ao paciente, quando percebe que não precisa mais de atendimento;  diz, claramente que, o que a pessoa tem não é inchaço e, sim, gordura localizada e, para combatê-la não precisa de fisioterapia,mas de caminhada e exercícios!
     Conhecimento. Honestidade. Simplicidade. Virtudes raras.
     Digo isto porque  talvez fosse mais atraente um texto mirabolante em que me permitisse revelar citações de autores modernosos, famosos pela mídia, de citar experiências vividas em cidades conhecidas pelo luxo e pela riqueza. Mas sou da turma dos ingênuos, dos simples(não confundam com tolos e ignorantes).
     É preciso muita sofisticação para chegarmos à simplicidade_  pela idade física , ou pelas múltiplas reencarnações.
     E de que maneira fazemos isso?    Sem stress, sem dores na cervical, sem ofensas revidadas... Conectando-nos à Natureza, em princípio. Existem outros métodos, porém para as mentes estressadas, que zombam do que não conhecem, tornam-se inalcançáveis!...
     Direi que , pouco a pouco, estabelecendo primeiro um contato visual e, mais tarde, vigoroso, a conexão com as forças da vida nos impulsionará a uma certa liberdade para a reflexão ponderada  e ação mais justa.
     Portanto, ainda sob o doce impacto do encontro inesperado, comungo com Castro Alves. Com quem, além do poeta, posso me entender agora diante desta boa emoção?
"...
 Larga harmonia embalsamava os ares.
Era dos seres a harmonia imensa,
 Vago concerto de saudade infinda!
..."
    
    

    

    

    
      

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

LADRÃO DE PASSARINHOS


    


    
O mundo está muito diferente, diferente daquele vivido nos idos de 60, onde a preocupação nossa era com o ladrão de passarinhos.
     Morávamos perto de um morro, quer dizer, no final da rua havia um morro: o morro do Andaraí. Lá, meu pai tinha conhecidos que, como ele, amavam pássaros; pena que engaiolados. E relembro com tristeza  que, às vezes, organizavam rinhas. Que amor era esse?
     Uma barbaridade. Isto eu não compreendia. Como podia meu pai, cujo coração era nobre e bom, se render a estas torpezas com os pobres galos?
     Quanto aos cárceres das avezitas, meu pai, pacientemente, sempre, em conversas intermináveis, tentava me convencer de que, se soltasse os canários, os curiós, os coleirinhos, o azulão, o pintassilgo eles morreriam , pois sempre viveram em gaiolas, não saberiam buscar abrigo e alimentação.
     Isto foi o máximo de crueldade que presenciei., além da colega de classe do Primário, que adorava me beliscar, até eu sentir dor!  
     De resto,  o gatuno que, sorrateiramente, certa madrugada, aproveitando-se da escuridão,  roubou todos os passarinhos que papai enfileirara, nas suas gaiolinhas, à frente da casa, bem no alto, na parede de relevos, colorida de amarelo claro.
     Quanta diferença dos dias de hoje! Ouvindo o tiroteio pesado que tem ocorrido na nossa cidade,  eu perco a tranquilidade e consequentemente, passei a temer sair de casa com frequência, como fazia antes.
     Idealizamos passeios, visitas, mas vendo as imagens exaustivamente repetidas nos noticiários da TV, causa-nos uma tal estranheza que, a cada dia, vem crescendo o pavor  que nos paralisa. Então, analisados os prós e os contras, evitamos sair...
     Restam-nos os bons livros, as aquarelas, as palestras  e as entrevistas dos filósofos contemporâneos pelo Youtube , a boa música, os poemas tocantes, as conversas com amigos pelo telefone ainda, a companhia de Nat King Cole, Sarita Montiel, Emílio Santiago... aquela turma da pesada dos anos 60, 70...quando então,  havia melodia.
     Hoje, há barulho. Um irritante barulho repetitivo, pesado, desconcertante, infeliz.
     Hoje, há carantonhas pelo comércio, com poucas exceções. Hoje, as amizades já não são as mesmas.  Com o passar do tempo, ao invés de se tornarem mais próximas, mais afáveis e compreensivas, o azedume , qual ferrugem , assola os corações despreparados para a vida, que despejaram de si a esperança e a alegria.
     O jeito é confiar. Enjeitar o desânimo e o fracasso, acreditar na vida renovada. Pelo menos, este é o propósito  do meu coração.
    

                        (canário-da-terra, livre, num gramado do  Jardim Botânico do Rio de Janeiro)
    
 


terça-feira, 19 de setembro de 2017

HISTÓRIA DO VELHINHO QUE QUERIA VIVER MUITO

      Queria viver. Viver mais. Viver muito.
     A sala cheia, todos à espera da consulta daquele reconhecido angiologista. O tempo, devagar, escorria pela manhã suave de inverno. Pela grande janela de vidro, podíamos ver a praça banhada de sol, as crianças com suas babás, os cães brincalhões, alguns medigos se banhando no pequeno lago.
     A vida desenrolava-se na aparente rotina.
     Mas a vida é movimento. A cada gesto, a cada ação, a cada fala, o pensamento retomando fôlego, delineando novas formas, novos hábitos.
     A maioria das pessoas ali presentes era idosa.
     A mulher de aparência desinibida e alegre, espera encaixe para a revisão de um mês da operação. Nada pagará por isto. Portanto, conversa, bebe o café, gentilmente oferecido pela secretária_ que ganhara o Sonho de Valsa costumeiro_ apresenta-se a um, a outro, revelando a que veio.
     Nisso, vagou um lugar ao lado de um senhorzinho de cara fechada, olhar receoso, que segurava uma sacola plástica com exames. Ela correu para o seu lado, pois o frio do ar condicionado ali não chegava.
     Sentiu-se aliviada de imediato. E olhou para o lado, sorriu delicadamente, mas não obteve o retorno esperado.
     O velhinho, impassível, com o semblante fechado anunciando tempestade dentro da alma, continuava sério e,  aparentemente, firme. Mas era só impressão. Seu espírito medroso e avesso às operações, aos poucos, soltou-se, desamarrou-se das correntes que o oprimiam. Revelou seu medo.
     Após a pergunta se ia operar, ele , beirando a indignação, afirma enfático:
     _Não gosto e não quero operar! Nunca operei em toda a minha vida! Vou falar com o doutor. Eu não quero!
     A mulher, piedosa, já antevendo o que o médico diria, retruca com meiguice:
     _Mas será melhor o senhor se livrar do problema que o aflige. Hoje em dia a ciência está muito avançada.
     A esposa , então, sorridente, cabelos brancos alourados pela cosmética, lábios um tanto borrados pelo carmim excessivo, comenta, aflita:
     _ É o que digo! Além do mais, estamos aqui porque acordamos com ele banhado em sangue. Todo o lençol da cama ficou sujo! Algumas veias arrebentaram...
     Todos olharam para o homem turrão. A operação era iminente!
     Mas ele não se dava por vencido, declarando com evidente orgulho, que era um esportista! "Pratico aquele esporte parecido com boliche, sabe qual é?"
     Não, ninguém sabia. Mas a esposa diz que não poderia mais praticá-lo, pois afeta muito a coluna. E então os dois iniciaram uma pequena discussão.
      Aflito, tentando contestá-la, diz: "Já pensou se morro anestesiado, na mesa de operação?"
     A mulher ao lado, sincera, espiritualista por certo e no intuito de abastecê-lo de coragem , mas inábil na sua intenção, intervém,  animada:
     _Seria uma maravilha, senhor! Imagine ir para o outro mundo sem dor? Afinal, o senhor viveu muito, já tem 84 anos(tinha revelado a idade logo no início)!
     Ele ficou brabo. Gritava que queria viver muito mais!... Passou a tremer tanto que  a sacola plástica deslizou das suas mãos rugosas.  
     Um sorriso meio sem-graça, um ligeiro rubor e a mulher calou-se, ante a interrupção da secretária:
     _ Senhor Vicente, o doutor lhe aguarda.
     Levantou-se com dificuldade e lá se foi , levando seu olhar assustadiço à frente dos passos trôpegos, arrastando seus medos, decepções, angústias e ilusões...