Passando a vida a limpo, na conversa gostosa com a amiga de há muitos anos__ cerca de trinta, chegamos a várias conclusões.
Entre cafés e sorrisos, alegrias e recordações, pãezinhos e bolos, as confidências foram muitas. Afinal, conhecêramos as famílias uma da outra e, portanto, temos alguma intimidade.
O lanche leve, a disposição para a boa conversa e a alegria do reencontro favoreceram para que a porta das lembranças fosse aberta. Fazia frio e o lanche quentinho e saboroso veio a calhar.
Dentre tudo o que foi dito nesta tarde, algo mexeu comigo como uma revelação e fiquei a remoer o assunto.
Ao contrário da minha amiga que mantém os cabelos lisos bem curtos, eu já prefiro um meio termo: nem joãozinho, nem longos. Para mantermos cabelos compridos saudáveis temos que frequentar com assiduidade o cabelereiro, coisa que não me agrada muito. Vou, vez ou outra, para um bom corte, destes que adornam o rosto, revelando-o favoravelmente.
E gosto deles soltos, à vontade, livres de prendedores, laçarotes, tiaras, elásticos, qualquer objeto que impeça a liberdade do movimento.
Às vezes, chego a prendê-los, definir uma composição estética, tento enfeitá-los . Mas qual o quê! Logo em seguida, desmonto o pretenso penteado, liberto as madeixas onduladas e sinto com prazer o vento mudando o visual, alterando sua forma.
Minha mãe, dedicada ao extremo, cuidadosa, preocupava-se em manter a minha aparência impecável. Meus cabelos longos exigiam que estivessem sempre muito bem penteados e ...presos! Desde bem pequena, era assim.
Pomposos laçarotes, ou fitas arrematando tranças apertadas faziam doer a minha cabeça ao extremo. Mas a menina recatada era muito calada e submissa. Simplesmente sempre aceitara o que me era imposto pelos meus pais. Nunca ninguém me perguntara se eu queria, ou se gostaria disso ou daquilo.
Hoje ouço com um certo espanto as jovens mães perguntarem a seus filhos pequenos, de dois, três , quatro anos qual a sua preferência (da roupa, do sapato, do penteado, do programa)...
Talvez seja este o motivo pelo qual nunca os prendo. Sempre libertos a esvoaçarem, pois são muito finos e leves.
Naqueles tempos, mamãe aparava os meus cabelos; mas, certa vez, fez uma proeza. Tirando um pedaço da minha orelha logo no início do corte, vimos o sangue salpicado, em todo o vestido branco engomado.
A aflição e o nervosismo estampados em seu semblante me fizeram engolir o choro e nada disse para não causar-lhe mais sofrimento ainda.
Por causa disto, mamãe determinou então que eu passaria a frequentar o salão de cabeleireiros.
Livrei-me para sempre das torturas dos penteados presos ou de algum escape da tesoura amolada de mamãe... Preferia os cabelos bem curtinhos, um corte muito badalado na época, chamado joãozinho. Ah! Como gostava! Livre, enfim, da longa cabeleira...
A partir destas lembranças ficamos a imaginar_ eu e a amiga, quantos fatos ocorridos na infância não determinam comportamentos, gostos e aversões na vida adulta.
Quedamo-nos a pensar... e até onde nosso próprio comportamento e palavras não interferem diretamente na conduta dos nossos filhos?