terça-feira, 19 de setembro de 2017

HISTÓRIA DO VELHINHO QUE QUERIA VIVER MUITO

      Queria viver. Viver mais. Viver muito.
     A sala cheia, todos à espera da consulta daquele reconhecido angiologista. O tempo, devagar, escorria pela manhã suave de inverno. Pela grande janela de vidro, podíamos ver a praça banhada de sol, as crianças com suas babás, os cães brincalhões, alguns medigos se banhando no pequeno lago.
     A vida desenrolava-se na aparente rotina.
     Mas a vida é movimento. A cada gesto, a cada ação, a cada fala, o pensamento retomando fôlego, delineando novas formas, novos hábitos.
     A maioria das pessoas ali presentes era idosa.
     A mulher de aparência desinibida e alegre, espera encaixe para a revisão de um mês da operação. Nada pagará por isto. Portanto, conversa, bebe o café, gentilmente oferecido pela secretária_ que ganhara o Sonho de Valsa costumeiro_ apresenta-se a um, a outro, revelando a que veio.
     Nisso, vagou um lugar ao lado de um senhorzinho de cara fechada, olhar receoso, que segurava uma sacola plástica com exames. Ela correu para o seu lado, pois o frio do ar condicionado ali não chegava.
     Sentiu-se aliviada de imediato. E olhou para o lado, sorriu delicadamente, mas não obteve o retorno esperado.
     O velhinho, impassível, com o semblante fechado anunciando tempestade dentro da alma, continuava sério e,  aparentemente, firme. Mas era só impressão. Seu espírito medroso e avesso às operações, aos poucos, soltou-se, desamarrou-se das correntes que o oprimiam. Revelou seu medo.
     Após a pergunta se ia operar, ele , beirando a indignação, afirma enfático:
     _Não gosto e não quero operar! Nunca operei em toda a minha vida! Vou falar com o doutor. Eu não quero!
     A mulher, piedosa, já antevendo o que o médico diria, retruca com meiguice:
     _Mas será melhor o senhor se livrar do problema que o aflige. Hoje em dia a ciência está muito avançada.
     A esposa , então, sorridente, cabelos brancos alourados pela cosmética, lábios um tanto borrados pelo carmim excessivo, comenta, aflita:
     _ É o que digo! Além do mais, estamos aqui porque acordamos com ele banhado em sangue. Todo o lençol da cama ficou sujo! Algumas veias arrebentaram...
     Todos olharam para o homem turrão. A operação era iminente!
     Mas ele não se dava por vencido, declarando com evidente orgulho, que era um esportista! "Pratico aquele esporte parecido com boliche, sabe qual é?"
     Não, ninguém sabia. Mas a esposa diz que não poderia mais praticá-lo, pois afeta muito a coluna. E então os dois iniciaram uma pequena discussão.
      Aflito, tentando contestá-la, diz: "Já pensou se morro anestesiado, na mesa de operação?"
     A mulher ao lado, sincera, espiritualista por certo e no intuito de abastecê-lo de coragem , mas inábil na sua intenção, intervém,  animada:
     _Seria uma maravilha, senhor! Imagine ir para o outro mundo sem dor? Afinal, o senhor viveu muito, já tem 84 anos(tinha revelado a idade logo no início)!
     Ele ficou brabo. Gritava que queria viver muito mais!... Passou a tremer tanto que  a sacola plástica deslizou das suas mãos rugosas.  
     Um sorriso meio sem-graça, um ligeiro rubor e a mulher calou-se, ante a interrupção da secretária:
     _ Senhor Vicente, o doutor lhe aguarda.
     Levantou-se com dificuldade e lá se foi , levando seu olhar assustadiço à frente dos passos trôpegos, arrastando seus medos, decepções, angústias e ilusões... 
   

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