Ele começou a se empolgar com o assunto. Levantou-se. Passou a gesticular agitado. Alto, magro, rosto fino, calvo, expressava-se como um personagem quixotesco.
Num pequeno cubículo é onde se instala diariamente, rodeado por um montão de inúmeros livros, pelo computador, além do enorme acervo de filmes e por um incenso, que acende assim que começa a lida.
A leve fumaça subia e percorria dançando, como um fantasma de desenhos animados, aqueles corredores estreitos e estranhos que o cercam. Pilhas e mais pilhas ´ de dvds vão até quase o teto_ dos mais antigos filmes aos mais recentes, desde documentários científicos aos melosos romances antiquados...
Esta locadora resiste. Resiste, valente, aos tempos atuais, velozes e provocativos. Uma fartura de filmes do YouTube e do Netflix cobrem a nossa necessidade , cada vez maior de comodidade e distração.
Mas para quem aprecia um bom filme e tem prazer em bisbilhotar e descobri-lo, como eu, ali é o paraíso dos cinéfilos!
Então, a imagem pacata, do homem atencioso e prestativo, sempre disposto a nos ajudar a encontrar preciosidades ,repentinamente... transformou-se! Começou a falar veementemente da política, dos assaltos, da insegurança, dos candidatos para as próximas eleições, do Rio de Janeiro, do Brasil, da América "Latrina"...consertando, ruborizado, em seguida.
Percebi a fala equivocada e quase me escangalho de tanto rir,mas me contive. Aflito, balançava e erguia os braços finos bradando com a voz rouquenha a sua indignação como aos quatro cantos do mundo!...
Nisso, a cena foi interrompida pela campainha da porta. A senhorinha veio devolver os filmes alugados no final da semana. Desarmara-se o homem. Continha-se, mas a respiração ainda estava ofegante.
E ela, pequenina, aparentemente doce, disparou, em voz firme: " Sabem que há três meses não recebo? Sou professora do estado!"
Os olhos do amigo chisparam. A boca tremulou e, antes que recomeçasse o infrutífero discurso, dei ciao e me retirei, impotente...
"O mundo, às vezes, fica-me tão insignificativo
Como um filme que houvesse perdido de repente o som.
..."
( Quintana, O Silencio)
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